Odilon José Roble, especialista em danças da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP.
A filosofia da dança
É dificil determinar quando homens e
mulheres dançaram pela primeira vez. É possível ver seus perfis em movimento
nos desenhos gravados nas cavernas de Lascaux. E como temos indícios de que os
homens da Idade da Pedra só registraram as coisas mais importantes de seu
cotidiano nas pinturas, a dança, provavelmente, fazia parte de seus rituais
religiosos. Podemos assim dizer que a dança surgiu da religião e em cerimônias
religiosas. No entanto, ela vai além, é fruto da necessidade de expressão
humana, de aplacar os deuses, demonstrar alegrias e tristezas.
Atualmente, dividimos as danças em
três formas distintas: a étnica, a folclórica e a teatral. Uma descende da
outra e estabelece universos próprios e particulares. A forma mais adequada para
compreender-se um tipo de dança, é conhecer a sua historicidade e a técnica.
Estudar o universo das danças requer dedicação e especialidades. Mas vale à
pena, pois essa é uma área de pesquisas em crescimento.
Para falar sobre o
assunto entrevistamos o especialista em danças da Universidade Estadual de
Campinas UNICAMP, Odilon José Roble. O pesquisador é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com
graduação em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas,
mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Educação,
Conhecimento, Linguagem e Arte) e doutorado em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (Metodologia de Ensino, Avaliação e Formação de
Professores). Odilon é professor do Departamento de Educação Física e Humanidades da
Faculdade de Educação Física da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto
de Artes da Unicamp.
Odilon entrou de cabeça nas
pesquisas sobre danças. Ele desenvolve pesquisas sobre Filosofia e Estética do movimento e Dança; encontrou na
filosofia e no cruzamento desta os elementos fundamentais para se compreender um
pouco mais a essência da arte.
“O pesquisador da dança que não frequenta o teatro ou os espaços não convencionais
em que a dança ocorre, está perdendo um dado essencial de sua pesquisa”,
diz Odilon José Roble
Há quantos anos desenvolve
pesquisas na área da dança?
Odilon José Roble: Desde
1993 estou envolvido em investigações que tratam da dança de algum modo. Como
pesquisador efetivo do corpo e suas possibilidades expressivas posso dizer que
desde 2000. Nesse sentido, penso que pesquiso dança há, aproximadamente, 15
anos.
Qual é o objetivo da sua
pesquisa?
Odilon José Roble: Atualmente,
meu principal interesse é propor cruzamentos entre a dança e a filosofia, em
especial o ramo da filosofia conhecido por Estética.
O que tem descoberto de
interessante nessas pesquisas?
Odilon José Roble: As
possibilidades de se compreender a dança por meio da filosofia são inúmeras.
Muitas das questões existenciais, estéticas e até éticas que são colocadas pela
filosofia são as mesmas que alguns espetáculos apresentam pela poética da dança.
Podemos dizer que, muitas vezes, a dança é um laboratório da Filosofia.
Quais pesquisas tem
desenvolvido nessa área?
Odilon José Roble: Tenho
pesquisado em especial a Filosofia de Arthur Schopenhauer e Friedrich
Nietzsche, além da constelação de autores em torno deles. O corpo, a dança
contemporânea e a Capoeira são objetos preferidos nesse recorte.
Quais são os seus
enfoques?
Odilon José Roble: A
Filosofia dos autores que citei é dita vitalista. Isso quer dizer que há um
foco em questões existenciais e estéticas, nas quais o corpo ganha destaque. A
arte, nesse contexto, não é vista como um patrimônio, mas antes, uma atividade
suprassensível, que nos coloca em contato com o âmago da existência em si.
Como a dança pode servir de
instrumento para se compreender a história de um tempo, momento, vidas, sociedades, memórias coletivas e
individuais?
Odilon José Roble: Uma
vez que a dança é a arte do movimento mais completa de senso estético ela
carrega em si memórias, percepções e imaginações que se construíram em relações
únicas de tempo e espaço. O interessante dessa construção é que ela se dá menos
em fatos e contextos e mais em experiências estéticas. Uma obra de dança é
também uma forma de registro emocional de uma época. A obra de Mary Wigman, por
exemplo, tem um papel singular no expressionismo alemão, apresentando gestos e
representações do que sentia o corpo naquele momento histórico. Porém, por ser
suprassensível, tem-se nesse registro, além do dado situado, uma dimensão
longitudinal sobre o ser humano.
Por que iniciou a
pesquisa na área de dança?
Odilon José Roble: Aos
poucos a dança foi se apresentando a mim como a investigação mais profunda que
uma abordagem estético-filosófica do movimento poderia ensaiar. Há muitas
outras formas de expressão nas quais estão presentes elementos que nos permitem
uma reflexão estética aprofundada, mas na dança tudo é menos óbvio. Não é
possível estabelecer regras definitivas sobre o que vemos em dança, em especial
na chamada dança contemporânea. Para uma investigação filosófica isso é muito
fértil.
Como foi o começo?
Odilon José Roble: Minha
mãe foi bailarina clássica e, depois, professora de balé. Sempre tive,
portanto, uma inspiração positiva com a dança. Na adolescência comecei a fazer
capoeira, mais para lutar do que para dançar. Logo percebi que estava mais
dançando do que lutando e achei aquilo muito bonito. Formei-me contramestre de
capoeira e cheguei a dar aulas por um tempo. A capoeira está entre as formas de
expressão corporal mais belas que já conheci. Para meus interesses de pesquisa,
trato-a como dança, embora reconheça suas outras dimensões. O movimento da
dança contemporânea absorve muitas formas de expressão, rompendo com o
academicismo clássico. Por essa razão pude participar da cena da dança
contemporânea de diversos modos até que hoje me dedico a construir uma reflexão
filosófica nesse terreno.
Conte um pouco das
dificuldades que encontrou.
Odilon José Roble: Há
um fenômeno incômodo no Brasil: temos inúmeros pesquisadores circulando em
torno de poucos temas, em geral, os temas mais genéricos. É comum no cenário
internacional você encontrar combinações de interesses que aqui seriam
exóticas. Um dos grandes reformadores da dança, Rudolf Laban, era arquiteto. Eu
sou formado em filosofia, pesquiso dança, dou aulas na Educação Física e no
Instituto de Artes, muita gente acha isso esquisito, heterogêneo. O próprio
sistema de medição da produção científica acha, pois que eu teria que publicar
assuntos menos híbridos em revistas temáticas. Poucos são os periódicos da
minha área que absorvem um artigo polissêmico, cruzando saberes distintos. Para
um pesquisador em começo de carreira isso é complicado. O modo de produção
industrial em que a universidade vem se convertendo atrofia as possibilidades
de reflexões poéticas, hibridismos. O risco da mesmice científica já vem sendo
amplamente constatado na produção atual. Começo a encontrar espaços menos
desconfortáveis para isso, mas isso já me bloqueou bastante e continua
obstando.
Quais fontes usa em sua
pesquisa?
Odilon José Roble: Fundamentalmente,
escritos filosóficos, em especial dos grandes pensadores mesmo. Sempre que
possível, gosto der recorrer a Schopenhauer, Nietzsche, Platão, Aristóteles. Há
muito neles que ainda pode subsidiar nossas reflexões. Estou atento à produção
atual e busco sempre trazê-la para meus escritos e minhas aulas, mas não abro
mão dos saberes clássicos. Os espetáculos de dança também são fontes de
pesquisa para mim, em especial a dança contemporânea.
Como é realizada a análise do material?
Odilon José Roble: Gosto
da forma de Ensaio Filosófico, tal como proposto por Martinich. Uma metodologia
filosófica é, fundamentalmente, argumentativa. Para isso é necessário que se
estabeleçam premissas, as quais a condução do argumento irá testar. Em alguns
casos, com dados empíricos e entrevistas, já fiz uso de Análise de Conteúdo,
mas o que mais me interessa nesse tipo de metodologias são as inferências
finais, processo que, no fundo, se assemelha muito com uma aproximação
filosófica-dedutiva.
O que leva em conta?
Odilon José Roble: É
fundamental refletir se a apropriação da ideia que estamos fazendo realmente se
aplica ao objeto analisado. Como eu disse, há muitas possibilidades de
cruzamento entre filosofia e movimento humano, filosofia e dança, mas isso não
quer dizer que qualquer conceito filosófico pode ser projetado na dança. Até
porque há conceitos na filosofia que são exclusivamente teóricos, os quais se
deturpam quando queremos materializá-los em nossos objetos de pesquisa
mundanos. Essa é, inclusive, uma forte razão pela qual os filósofos que se
preocuparam em discutir a vida são mais aplicáveis a objetos diversos do que,
por exemplo, estudos de lógica simbólica.
Como amarra os materiais?
Odilon José Roble: Por
meio de inferências e interpretações. Como já dito, quando faço uso de Analise
de Conteúdo essa é a etapa final da análise. Quando se trata de um ensaio
filosófico, elas estão presentes no desenrolar do argumento. De um modo ou de
outro, não me parece possível pensar em conclusões filosóficas sem uma necessária
abstração, fruto de inferências construídas da melhor forma que o material (ou
premissa) permitiu.
Para quem deseja fazer
pesquisas na área de dança o que indicaria?
Odilon José Roble: Que
assista espetáculos de dança. Há hoje uma cena da dança muito efetiva no país,
com artistas nacionais muito talentosos (bailarinos, coreógrafos etc.) além de
temporadas internacionais excelentes. Só o contato com a experiência estética
da dança permite uma reflexão situada. É evidente que a bibliografia é indispensável,
ela é condição necessária, mas não suficiente. O pesquisador da dança que não
frequenta o teatro ou os espaços não convencionais em que a dança ocorre está
perdendo um dado essencial de sua pesquisa.
Conte um pouco do passo
a passo da sua forma de pesquisar a dança.
Odilon José Roble: Um
tema, para me levar a pesquisá-lo, tem que ser algo que me encante de algum
modo. Pesquisar em filosofia e dança sem interesse estético é inócuo e
desnecessário. Meu primeiro passo é, portanto, a própria experiência estética.
Considero essas experiências, para mim, tanto assistir espetáculos, como já
citei, como ler clássicos da filosofia. Também coordeno um grupo de dança na
Faculdade de Educação Física da Unicamp. Nele, encontro mais uma forma de obter
esse tipo de experiência que estou considerando um primeiro passo para a
pesquisa. No passo seguinte, trato de tentar criar nexos de inteligibilidade
entre essa experiência estética e os saberes da filosofia. Decorre disso,
talvez como um terceiro passo (ou outra face do segundo), o exercício
argumentativo. Por fim, o texto como um todo deve ter sua forma, sua unicidade.
O último passo é dar essa singularidade ao texto, tornando-o representante
dessa pesquisa que começou com a provocação estética do movimento (no palco ou
no livro).
Quais cuidados tomar?
Odilon José Roble: No
caminho que escolhi, tento ficar alerta para não produzir um texto por demais
conceitual, anulando a potência sensível da experiência estética. Por outro
lado, fico também vigilante para não incorrer na estetização vazia do texto,
produtora de elucubradas formas de não se dizer muita coisa.
Quais temas futuros
deseja abordar na dança?
Odilon José Roble: Tenho
colhido material para um projeto mais ou menos intitulado “filosofia da
capoeira”. Suponho que temos uma epistemologia difusa dessa arte, ainda pouco
sistematizada. Não estou falando de conceitos ou técnicas, mas de uma singular
visão de mundo que o capoeirista assume, de forma quase constante em diversos
locais da prática. Esse é um fenômeno que me instiga.
Suas conclusões.
Odilon José Roble: Há
um texto meu, escrito para um periódico bem simples inclusive, que sempre
alguém me pergunta sobre ele, é citado ou lembrado. Trata-se de um texto sobre
a dança na obra “Assim falou Zaratustra”,
de Nietzsche. Como eu disse, não é um texto profundo, mas essa pequena
notoriedade do artigo me faz pensar que há um número considerável e crescente
de pessoas se interessando por uma abordagem filosófica da dança e das artes do
movimento de modo mais amplo. Dito de outro modo, parece que tem bastante gente
cruzando os termos “dança" e “Nietzsche" no Google.
*É
jornalista, pesquisadora, historiadora. Formada em jornalismo pela Universidade
Metodista, com formação em ciências sociais pela USP e Direito
pelo Mackenzie, tem especialização em Fundamentos e Artes pelo Instituto de
Artes da UNESP de São Paulo e Mestre em história
pela PUC de São Paulo. É autora do livro Abre as portas
para os Santos Reis da Editora Fundação Pró-Memória,
Animais nas Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que benzem com as mãos da
editora UCG.