Ao som da folia de reis em São Caetano do
Sul
Textos e fotos: Priscila Gorzoni*
“Ó
de casa, nobre gente,
Escutai e ouvireis,
Lá
das bandas do Oriente
São
chegados os três Reis!”
(trecho
retirado de Festas
e
Tradições Populares do Brasil,
Melo
Morais Filho)
Muitos doces e quitandas para festejar a chegada do Dia dos Santos
Reis. Os grupos de folia andam durante vários dias e cantam: “Ó de casa, nobre
gente, Escutai e ouvireis, Lá das bandas do Oriente, São Chegados os três
Reis”...Eles levam o colorido em dezembro para as casas dos moradores de São
Caetano, com o intuito de contar o nascimento de Jesus e o significado do Natal.
A primeira vez que vi um grupo de folia de reis, em ação, foi no sul de
Minas Gerais. Era então um dia tranquilo, 26 de dezembro, quando ouvi um som de
viola, o toque de sanfona e vários homens vestidos com roupas coloridas, três
deles dançando na frente do grupo os quais com seus trejeitos e movimentos,
assustavam as crianças da cidade.
Descobri que estes eram os “marungos”, cuja função era assustar mesmo.
Depois deste grupo avistei outros, eles se espalhavam pela cidade toda e vinham
de todas as partes. Cada um com uma bandeira diferente, todas celebrando a
visita dos Três Reis Magos e o nascimento de Jesus Cristo. As roupas, de um
colorido variado e as músicas com falas especiais. Cada grupo ia passando em
frente de uma casa, pedindo licença para entrar e cantar em frente do Presépio.
Quem ia na frente pedir licença para a entrada do grupo, era o marungo, ou
palhaço. Permitida a entrada na casa, o grupo sacava da viola e começava a
entoar a música e cantar seus versos. Entravam cantando, na casa e, em frente do
Presépio continuava a cantoria. Isso se repetia nas outras casas e durava o dia
inteiro e, as andanças, continuavam até o dia 6 de janeiro, quando era feita a
última festa, a Festa da chegada!
O pessoal enfeitava as ruas e os participantes do grupo compravam doces
caseiros com o dinheiro angariado nas andanças, para distribuir às crianças que
se encontravam na casa ou que acompanhavam a bandeira. Aqui em São Caetano
procurei grupos de folia de reis, mas só que ouvia era o desconhecimento de sua
existência. Em 2006, após uma caçada sem tréguas, encontrei um grupo que
voltava a atuar na função. Eles haviam acabado de formar uma equipe e
confeccionar uma nova bandeira. Afinal, grupo de folia de reis sem bandeira,
não existe. A bandeira é fundamental, no evento.
Fui a alguns ensaios do grupo que se iniciaram no final de novembro e
inicio de dezembro. O ensaio é feito na casa do festeiro, ou dono da “promessa”.
A origem remota da Folia de Reis
Não se sabe ao certo quando nasceu a folia de reis no mundo. Provavelmente
foi na Idade Média. Mas, desde os tempos mais remotos, a festa popular dedicada
à visita dos três Reis Magos, vindos para ver e conhecer o Deus-Menino, que é
comemorada no dia 6 de janeiro em toda a Europa, especialmente em Portugal,
França, Espanha, Bélgica, Alemanha e Itália.
A manifestação é considerada um Auto Popular, profano-religioso, pertencente
ao ciclo natalino, formado por um grupo de músicos, cantadores e dançadores,
que vão de porta em porta anunciar a chegada do Messias e homenagear os Três
Reis Magos. Em Portugal a Folia é chamada também de reisado e reiseiros, que tanto
pode ser o cortejo de pedintes cantando versos religiosos, como cantos sacros
com motivos sagrados da história do nascimento de Cristo.
No Brasil a folia é constituída por grupos, exclusivamente masculinos,
de músicos e cantadores que percorrem as ruas da cidade, sítios e fazendas,
geralmente entre os dias 20 de dezembro e 6 de janeiro, comemorando o
nascimento de Jesus Cristo e cantando em louvor do Deus-Menino. Fazem parte
desse roteiro as visitas às casas, de açodo (de surpresa), sem prévio aviso,
mas com acordo pré-determinado: chegada, pedido de licença, agradecimento e
despedida. Se a porta não for aberta, depois de insistir, o grupo se retira
cantando um desagravo.
O Terno de Reis é acompanhado por sanfona, rabeca, caixa e, no nordeste,
inclui pífanos (flautas de madeira). Em algumas localidades como Encruzilhada,
interior de São Paulo, é costume as crianças saírem às ruas com os rotos
pintados de carvão, vestindo sacos e com panos nas cabeças para pedir ´reis`.
Pelo Brasil
No interior do Brasil, vários grupos saem pelas ruas da cidade e casas
da roça com instrumentos musicais, tocando, dançando, cantando versos
religiosos sobre a Natividade, os Reis Magos e os Pastores, a caminho de Belém.
Os participantes vestem-se de calça ou saiote, com guarda-peito. Portam espelhinhos
e fitas coloridas. Na frente do grupo, vão os marungos ou palhaços, usando
máscaras e roupas coloridas. Sua função é distrair o Rei Herodes, para permitir
a visita dos Reis Magos a Jesus-Menino. E, atrás deles, vão os cantadores e
tocadores de viola, sanfona, rabeca, caixa, adufe e triângulo.
Em algumas regiões como o Nordeste incluem-se entre os instrumentos
básicos, os pífaros. Em outras localidades como Encruzilhada, no interior de
São Paulo, as crianças saem às ruas com os rostos pintados de carvão, vestindo
sacos com panos na cabeça e pedindo doces. Todos passam de casa em casa
louvando com o seu canto o nascimento de Cristo.
O reisado ou Folia de Reis pode ser apenas a cantoria como também
possuir enredos ou uma série de pequenos atos encadeados ou não. Mas geralmente
ela segue um roteiro pré-determinado: a canção de chegada, de pedido, de
licença, agradecimento (para a doação recebida) e a despedida.
A Folia de Reis também cumpre uma função cultural histórica, através de
suas performances os participantes anunciam a chegada do Messias e homenageiam
os três Reis Magos. No norte do Brasil, o Dia de Reis marca o final do ciclo de
Natal. Na cidade de Natal há uma festa muito concorrida na capela dos Reis
Magos é chamada de Limpa, onde são veneradas as imagens que estavam no Forte
dos Reis Magos enviadas por El-Rei Dom José em 1725.
Embora existam algumas diferenças de uma região para a outra, no Brasil
a folia de Reis começa a partir do dia 25 e vai até o dia 6 de janeiro. Entre
um dos aspectos mais importantes da festividade está o da promessa, sem ela o
grupo não sai. Algum conhecido procura o grupo da folia e pede para sair em
prol de sua promessa, que pode ser um agradecimento ou o pedido de cura de uma
doença na família. Os pedidos nunca são rejeitados e Santo Reis, que é forte.
Em São Caetano do Sul
O sábado amanheceu chuvoso e frio. Como boa parte dos sábados do inicio
de dezembro. Em uma das casas da Vila São José o churrasco já está adiantado e
a fumaceira se avista no inicio da rua. A dona da casa e seus filhos colocaram
bandeirinhas coloridas para receber a Companhia de Santa Cecília. Eles saem
toda hora no portão para ver se o carro com os foliões chegou. Mas nada.
A chuva fina começa a cair e causa preocupação. Não demora muito e os
primeiros começam a chegar. A dona da casa e festeira Sandra Regina de Oliveira
Rocha, 48 anos, vem receber na porta de sua casa os foliões. Desde pequena
Sandra tem contato com a folia de reis, ela conta que existiam inclusive outros
grupos de folias na cidade, mas é a primeira vez que uma companhia de reis vem
a sua casa. “Nos anos 70, a minha família recebia os grupos de folias de reis
em casa. Eles fizeram o convite no ano passado e para mim isso foi uma honra
enorme. Para ser festeiro é preciso receber o grupo em casa, acompanhar a reza
e o acolhimento da bandeira”, relata Sandra.
Nesse ano, Sandra contou com a ajuda de toda a família na confecção da
comida. Escolheram o churrasco por ser mais rápido e prático e se programaram
para o almoço desde o começo do ano.
Diferente das cidades pequenas, que geralmente saem para cantar nos
dias 24 de dezembro, nas cidades maiores os dias são fixados conforme a
disponibilidade dos componentes do grupo. Esse é o caso da Companhia de Reis de
Santa Cecília, o único grupo de reis de São Caetano. Os componentes já saiam
com outros grupos, mas há um ano formaram o grupo e passaram a sair em São
Caetano.
Acostumados com a correria e as andanças, eles resolveram sair no dia
17 de dezembro porque é a data mais próxima do dia 25 e todos os componentes
estão disponíveis. “Como todos trabalham cantamos nas casas das pessoas durante
a semana das 19 às 22 horas e nos finais de semana o dia todo”, relata Wilson Maria, 60 anos,
desde os 9 na folia e atual embaixador da Companhia de Santa Cecília de São
Caetano do Sul. A chegada acontece no dia 6
de janeiro na casa dos festeiros, casal dono da promessa e a festa da chegada
acontece em janeiro, esse ano no Clube Águias de São Caetano, ali serão
distribuídos os quitutes comprados com o dinheiro angariado nas andanças.
O grupo tem 12 participantes, entre eles: três marungos, sete cantores
e dois tocadores. Nos bons tempos de São Caetano, havia mais de 6 companhias na
cidade (duas da Vila Gerty, uma da Boa Vista e Fundação). As novas gerações não
conhecem a tradição da folia por isso ela está ficando para trás. “A Folia de
Reis existe em São Caetano desde o inicio da década de 50 com a formação do
grupo Folia de Reis da Vila Gerti que contou com a liderança de Olegário Guerra”.
Seu Olegário é falecido, era natural de Três Corações chegou em São
Caetano em busca de emprego no final da década de 40 e para cá trouxe a
tradição da folia de reis. “Quando cheguei aqui vinha grupo de fora do Baeta
Neves e de São Paulo. Acabei fazendo amizade com o pessoal e me animei a formar
um grupo com moradores da cidade. O grupo permaneceu até 2004”, relatou em uma
das entrevistas que fiz com ele quando ainda era vivo.
Seu Olegário se lembrava de como era a cidade naquela época e as
dificuldades de ir de um lugar para outro. “Era tudo barro, quando cheguei o
bairro Vila Gerti tinha poucas casas e em época de chuva era um barro só. Não
tinha carro, então muitas vezes a gente ia cantar nos lugares de caminhão ou à
pé mesmo. Mas era bom, o pessoal vivia em harmonia e tinha muito respeito pelos
mais velhos. Nós entravamos em qualquer lugar e era aquela Fé”, lembrava.
Ele faleceu há alguns anos, mas antes disso me deu longas entrevistas
contando um pouco de como era o inicio. Ele dizia: “Sempre tive muita fé nos
Santos Reis, já pedi muita coisa para ele e consegui. É preciso continuar a
tradição, mas seguir corretamente as regras. A principal delas é o respeito e
Santos Reis no coração”, finalizava.
BOX
No final da década de 40 São Caetano
começa a se industrializar. Perdia o seu caráter rural para entrar em uma nova
era a moderna das grandes fábricas e mão-de-obra migrante. Atraídos por esse
crescimento de emprego nas industrias milhares de migrantes vindos de todas as
partes do Brasil, especialmente Sul de Minas Gerais e o interior de São Paulo
mudam a paisagem da cidade. Os migrantes mineiros trazem sua mão de obra mas
não apenas isso, carregam seus sonhos, costumes, lazeres e manifestações
folclóricas. A história da Folia de Reis em São Caetano coincide com a chegada
dos mineiros do sul e a industrialização. Outro aspecto importante é que as
populações vindas do sul de minas e interior de São Paulo nessa época se
concentraram em alguns bairros da cidade, como a Vila Gerti, São José, divisa
com Vila Palmares. Segundo relatos dos participantes mais antigos em 1948 já
existia Folia de Reis em São Caetano. O primeiro grupo de folia de Reis formado
em São Caetano contou com a participação de alguns moradores da cidade e de São
Paulo. Naquela época participavam da folia de São Caetano Pavão do Norte
(Sebastião), Tangará (Geraldo Soares), João Pedro, Joaquim Marciliano e seus
irmãos, Mané Matias, José Honorato Moreira, José Miguel Vilaça, Chico Carro. A
partir do final da década de 1948 Chico Carro fez amizade com os foliões de São
Caetano que já pretendiam montar uma Companhia aqui e acabou se unindo ao
pessoal da Vila Inhocunhé, Pirituba.
Fonte: O livro das curiosidades de São Caetano do Sul, Priscila Gorzoni
(ESSE TEXTO NÃO PODE SER COPIADO SEM OS DEVIDOS CRÉDITOS DE AUTORIA, CONFORME A LEGISLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS LEI 9610, de 19 de fevereiro de 1998, "Dos Direitos Morais do Autor", Artigo 24, Inciso II. POR FAVOR, NÃO COPIEM, COMPARTILHEM O LINK. OBRIGADA)
Fonte: Abre as portas para os Santos Reis.
*É jornalista,
pesquisadora, historiadora. Formada em jornalismo pela Universidade Metodista,
com formação em ciências sociais pela USP e Direito pelo Mackenzie, tem
especialização em Fundamentos e Artes pelo Instituto de Artes da UNESP de São
Paulo e Mestre em história pela PUC de São Paulo. É autora do livro Abre as
portas para os Santos Reis da Editora Fundação Pró-Memória, Animais nas
Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que benzem com as mãos da editora
UCG.
Referências
GORZONI, Priscila. Abre as portas
para os Santos Reis, Editora Fundação Pró-Memória, São Caetano do Sul, SP,
2007.
Para saber mais: http://promemoriasaocaetano.blogspot.com.br/