Costumes de São Caetano do Sul
As
sortes das pessankê (Ovos da Páscoa Ucraniana)
Por: Priscila Gorzoni
Foto/Priscila Gorzoni
Alguns dias antes da Páscoa, Douglas
Anderson Martinez, 52 anos, que é brasileiro, filho de ucranianos, (ele se
considera ucraniano de coração), começa a elaborar as pessankê ou Pysanka
(ovos
pintados ou desenhados). O artista desenha esses ovos às vésperas da Páscoa
ucraniana que, em cada ano cai em um dia. Às vezes a data coincide com a Páscoa
católica, outras, caem em dias diferentes. “Começo
a prepará-los ainda na quaresma e, chego a concluir cem ovos nesse período
inteiro, cerca de dez por dia. Tudo depende do tempo que tenho. Depois de
prontos, eu os vendo (alguns) e faço doação de outros, para um amigo que não
esteja bem saúde. Cada ovo tem seu símbolo e um objetivo. Para as meninas
solteiras costuma-se dar uma pessankê com o desenho de um rastelo, para desejar
bom casamento. As pessankê de madeira servem como um talismã e significam votos
de boa sorte”, exemplifica Douglas.
Ele
foi estimulado a esse artesanato pela esposa, Marú Martinez, 49 anos, que é da
segunda geração de ucranianos, e nasceu em São Caetano do Sul. Douglas sempre
se interessou pela cultura ucraniana e pesquisou as tradições por sua própria
conta. Marú conta que ele conhece mais a história e os costumes ucranianos do
que muitos descendentes de ucranianos. “Eu
faço parte da sociedade há mais de 30 anos, sou o tesoureiro há mais de 20, e a
cada dois anos vamos as reuniões no Paraná. Eu aprendi o idioma ucraniano e
quando vou as reuniões ninguém percebe que não sou ucraniano”, relata
Douglas.
Dentro
da cultura ucraniana, a maior paixão de Douglas é a preparação dos pessankê, palavra
que se origina do verbo pysaty,
que significa escrever. Pêssanka são ovos
pintados a mão e sua origem é eslava. Eles simbolizam a vida, a saúde e a
prosperidade.
Os
ovos artísticos ucranianos recebem esse nome porque não são pintados, mas
escritos com simbolismos. Essa arte tradicional dos ucranianos vem de alguns
milhares de anos, quando eles eram preparados para presentear as divindades no
inicio da primavera, época da colheita. Com a chegada do Cristianismo, esses
ovos passaram a simbolizar a Páscoa, isto é, a Ressurreição de Cristo, pois
páscoa, quer dizer “passagem de Cristo, da morte para a vida”.
Foto/Priscila Gorzoni
Durante a história, no regime comunista, as pessankê sofreram perseguições,
culminando com a proibição desse artesanato nos países comunistas. Atualmente,
elas são produzidas no mundo inteiro pelos descendentes de ucranianos. Essa
arte ganhou ainda maior força após a independência da Ucrânia em 1991.
Foto/Priscila Gorzoni
Dá
trabalho preparar as pessankê.
Essa é uma arte muito delicada e exige bastante paciência. Cada ovo de galinha,
cru, é cuidadosamente desenhado a lápis. Incialmente, tira-se todo o seu
conteúdo e, só depois, inicia-se a elaboração da pintura. Em seguida, passa-se
a cera de abelha, nas partes em que se deseja que fique branco. A cera protege
e não deixa a tinta penetrar. Com a experiência, o artista aprendeu alguns
segredos, tais como, por exemplo, iniciar usando as cores mais claras, para
depois utilizar as escuras, que vão se sobrepondo. O pessankê é considerado um
amuleto da sorte, por isso, é costume dos ucranianos se presentearem com eles. “Os desenhos têm como base os símbolos, usa-se
uma simbologia tradicional. Cada um dos motivos significa alguma coisa. Em
relação às tintas, elas são compradas por algum padre ucraniano que vá aos
Estados Unidos. Mas, antigamente, elas eram feitas de modo artesanal, com a casca
de cebola, o vermelho, com a beterraba, ervas para o verde. As tintas atuais
são um pó misturado à água fervida e uma colher de vinagre branco”, ensina
o artesão.
Foto/Priscila Gorzoni
Com
a prática, Douglas diz elaborar os pessankê “de olhos fechados”. Sua maior preocupação é
manter proporções. “Eu sempre gostei disto. Nas reuniões da Sociedade Ucraniana,
estudamos um modo de uniformizar esse artesanato, uma espécie de unificação.
Certo dia, eu já tinha 20 anos, interessei-me por essa arte popular. Aprendi a
fazê-los com a madrinha da Marú. Ela se chamava Eugênia. A mãe de Eugênia, em
1923, trouxe essa tradição ucraniana. Ela pintava e eu acompanhava tudo muito
atento para aprender. Ela trabalhava nessa tradição, nas antevésperas da Páscoa
Ucraniana. Seu objetivo era preparar as pessankê para dar e vender. Em São Paulo,
só havia ela para fazer os ovos desenhados.
É
uma pena, mas essa tradição está acabando. Ate 1967 a 1969, existiam ainda muitos
ucranianos por aqui. Hoje, temos uns seiscentos ucranianos, mas que participam das
atividades tradicionais ucranianas, são apenas uma centena. Em geral, os velhos
participam mais, os jovens não querem saber disso. Não temos mais jovens procurando
aprender a fazer as pessakê. Todo os anos, nós reunimos voluntários ucranianos para
ensinar os jovens, mas aparecem uns três ou quatro e não mostram entusiasmo
para dar continuidade. Assim, uma hora
essa tradição vai acabar”, conta, penalizado, Douglas.
Ao
mesmo tempo que Douglas narra suas experiências, vai elaborando um exemplar de
pessankê, pois estamos a alguns dias da Páscoa
ucraniana. Delicadamente, ele risca o desenho a lápis no ovo de galinha. E, já
com a cera de abelha, mergulha-o na tinta preta, depois, leva-o debaixo da água
corrente e o enxuga, cuidadosamente, com um guardanapo. Ele explica que é
necessário passar vinagre no ovo para a tinta fixar-se melhor, pois a gordura
das mãos pode manchar a pintura do ovo. Outros segredos tradicionais também são
importantes, entre eles, o de que, algumas cores, como o marrom, e suas
tonalidades, têm sua origem e uso pelos povos das montanhas da Ucrânia.
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Uma
parte muito delicada e até assustadora, o ato do artista passar o ovo,bem de
leve, no fogo, sempre virando-o de lado para não queimá-lo. Ele explica:
“É
preciso tomar bastante cuidado porque o aquecimento excessivo, pode estourar o
ovo. As cores às vezes, saem errado, pois a cor depende também da casca do ovo,
ela pode interferir na cor. Tudo influencia o artesanato geral do ovo, desde a
casaca do ovo, aos toques do artista. O ovo pode estourar sozinho também, os
velhos diziam que se alguma coisa for acontecer ele a chama e manda essa coisa
embora.... Por isso, o ovo funciona como um talismã. As pessoas costumam exibi-lo
na sala de visitas, onde quiserem. Não se deve cozinhar o ovo, o máximo que
você pode fazer é um furinho e retirar a gema, mas o ideal é fazer a pintura
com ele integralmente cru”, explica Douglas. Aos poucos, as imagens vão
aparecendo, e o resultado é sempre uma surpresa. Para finalizar, no trabalho
feito, passa-se um verniz normal, mas antes é necessário deixar o ovo descansar
por algumas horas.
Para
Douglas o ovo tradicional usado para fazer a pessankê é o ovo de galinha. Mas,
na Ucrânia, eles também usam o ovo de madeira. “O que inovamos foi fazer a pessanka em ovos de porcelana e parafina.
Esses não são da tradição. Mas, por outro lado, trazemos os simbolismos e
motivos tradicionais. O pessankê mais comum é o feito em porcelana. O de
madeira é pintado com pincel, é diferente, você já vai vendo o resultado, já
com o ovo de galinha, o resultado é uma surpresa. Só na hora de passar no preto,
que é a última cor, é que você vê o resultado. A outra diferença é que o de
madeira é mais demorado”, relata.
Lembranças
da infância
Assim
como aprender a língua ucraniana, elaborar as pessankê é uma das atividades da
infância dos descendentes de ucranianos. “Víamos os nossos pais fazerem esses
ovos, praticar as danças típicas nas igrejas ucranianas e na Sociedade
ucraniana, que fica no Bairro da Fundação. Todas as tradições giraram sempre em
torno da Sociedade Ucraniana e da igreja.
“Em São Caetano do Sul a imigração
ucraniana chegou em 1926, com a vinda do pessoal que fugia das ameaças da
Segunda Guerra Mundial. São Caetano já tinha uma turma e, na época, a cidade já
era um pouco populosa”, conta Marú. Antes de terem uma igreja
ucraniana, as missas eram celebradas em ucraniano na Matriz Velha.
Na
época em que Douglas começou frequentar a Sociedade Ucraniana, todos falavam o
idioma ucraniano. Vinham ucranianos de várias regiões, todos os dias, para
ensinar a falar e a escrever o alfabeto. “Da Ucrânia chegavam revistas. Eles
procuravam ajudar a comunidade. A segunda geração da guerra já era estudada, vinham
para cá engenheiros, médicos, advogados. Inclusive a nossa igreja ucraniana foi
feita por engenheiros ucranianos. A maior dificuldade desses ucranianos era com
o idioma, para comprar as coisas era necessário se comunicar por mímica. Só
após as décadas de 1970, os velhos ucranianos começaram a abrir espaço para os
novos, porque era tudo em ucraniano. Por outro lado, eles não tiveram
dificuldades com a comida, pois gostavam de batata, trigo, pão e embutidos”,
finaliza Douglas.
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A chegada dos ucranianos
Os
ucranianos começaram a chegar ao Brasil em 1891. Entre os anos de 1922 e 1930,
vários deles, vítimas da guerra contra os comunistas, foram assentados em São
Paulo, sendo que muitos escolheram São Caetano do Sul para viver. Nessa época
foi criada a Sociedade União Popular Ucraniana, que passou por várias mudanças
de nome. Entre 1946 e 1949, chegou ao
país a última leva de 1,500 famílias ucranianas vindas dos campos de deslocados
da Guerra. Aqui eles se uniram aos membros da colônia e formaram a Sociedade Ucraniana
Unificação. A mudança do estatuto da entidade aconteceu em 1977 e com isso,
passaram a aceitar os brasileiros filhos de ucranianos.
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O
ritual da Páscoa ucraniana
A celebração da Páscoa ucraniana se
inicia no domingo que marca o final da quaresma, isto é, o Domingo de Ramos que
se inicia com o jejum. Na quinta-feira Santa, pela manhã é celebrada a missa, na
qual são consagrados: “Tchastytsi” Santos Dons, que serão utilizados durante o
ano para comungar pessoas enfermas; “Antiminsos” pequenos panos de linho que
trazem no verso relíquias de Santos, sem os quais não se podem celebrar missas;
“Myro”, o óleo utilizado para o Sacramento do Crisma. Ao final da tarde celebra-se
o oficio das Matinas da Sexta-feira Santa com a leitura dos doze Evangelhos
sobre o sofrimento de Jesus Cristo, no qual os fiéis seguram acesas velas que
ao término são levadas para seus lares e com as quais são feitos sinais da cruz
nas portas e janelas para que Deus as proteja. Na sexta-feira Santa, pela manhã,
são celebrados os Ofícios das Horas Régias, e pela tarde, o Oficio das Vésperas,
seguido-se a procissão, exposição e veneração do Santo Sudário
“Plashtchanytsia”
À
noite, durante a Vigília Pascal, é celebrado o Oficio dos Cânones da
Crucificação do Senhor e das Lamentações da Mãe de Jesus Cristo. O Domingo de
Páscoa, pela manhã, inicia-se com a Procissão Pascal até a entrada da igreja,
que se encontra fechada, simbolizando o Santo Sepulcro. O celebrante faz o
sinal da cruz na porta e, então essa porta é aberta; o Santo Sudário foi
recolhido ao Altar simbolizando a Ressurreição de Cristo; dá-se então início à
Divina Liturgia de São João Crisóstomo, durante a qual os fiéis participam da
comunhão e, após último, é realizada a benção dos alimentos, os quais são
trazidos em cestos ricamente decorados com toalhas bordadas e uma vela, tendo
ao centro a paska (pão pascal, em forma de bolo ou panetone) e as pessankê,
tudo contornado por carne, linguiça defumada, hrim raiz forte, manteiga,
queijo, sal e ovos cozidos. Após a missa, com a benção dos alimentos, os amigos
e parentes se cumprimentam, trocando as pessankê que simbolizam os desejos de
cada um para o outro. E todos se cumprimentam dizendo: “Chrestós Voskrés! Cristo Ressuscitou! Voisteno Voskrés! Em verdade,
ressuscitou!”
Foto/ Priscila Gorzoni
BOX
Os
símbolos das pessankê
Cruz:
Cristianismo, vitória contra o mal.
Trigo:
Boa colheita.
Pinho
ou junco: juventude eterna, saúde.
Estrela:
vida, crescimento.
Cavalo,
veado, carneiro: riqueza, prosperidade.
Rosas:
amor, caridade.
Papoula:
alegria, beleza.
Girassol:
fortuna.
Triângulo:
equilíbrio.
Espirais:
proteção.
Linhas
serrilhadas: proteção.
Linhas
espiraladas: eternidade.
Aves:
desejos realizados, sorte.
Galo:
fertilidade, sorte.
Pássaro:
boas noticias.
Peixes:
regeneração.
Escada:
ascensão.
Rastelo:
casamento.
Rede:
separar o bem do mal.
BOX:
O significado das cores
Branco:
pureza, símbolo do nascimento.
Amarelo:
luz, sabedoria, juventude, alegria.
Laranja:
resistência, ambição, força, símbolo do sol eterno.
Rosa:
sucesso e contentamento.
Verde:
fertilidade, esperança, riqueza.
Vermelho:
caridade, despertar espiritual, alegria de vida.
Azul:
boa saúde, verdade, fidelidade.
Roxo:
fé, confiança, paciência.
Marrom:
colheita e generosidade.
Preto:
eternidade.
*É
jornalista, pesquisadora, historiadora e cientista social. Formada em
jornalismo pela Universidade Metodista, com formação em ciências sociais pela
USP e Direito pelo Mackenzie, tem especialização em Fundamentos e Artes pelo
Instituto de Artes da UNESP de São Paulo e Mestre em história pela PUC de São
Paulo. É autora do livro Abre as portas para os Santos Reis da Editora Fundação
Pró-Memória, Animais nas Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que
benzem com as mãos da editora UCG.