sexta-feira, 20 de maio de 2016

Entrevista com Ademir Médici
Memórias de um jornalista memorialista
Por: Priscila Gorzoni






Quem se interessa em conhecer mais sobre memória da cidade, curiosidades e fatos históricos do ABCD, não perde um dia a leitura da coluna Memória, do Diário do Grande ABC”, de Ademir Médici. Essa coluna é publicada diariamente desde 2 de setembro de 1987 e focaliza a memória histórica e social desta região, integrada por sete municípios.

Esse jornalista memorialista ganhou notoriedade com seus variados trabalhos sobre a memória, as histórias e os personagens destaca dos ou inusitados da região. De livros, artigos a programas de televisão, Ademir tem feito a sua própria história dentro da memória da região. Médici é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Atua na Imprensa do Grande ABC desde 1968. Especializou-se na área de resgate e construção da memória.

Além da Coluna Memória, do Diário do Grande ABC, ele colabora com a revista História Viva, da Ediouro Duetto Editorial, Co-produziu e apresentou o programa "Memória na TV", pela TV Vivax, Canal 3 – edição 135, em junho de 2008. Manteve o quadro MEMÓRIA no programa ABCD Maior em Revista, pela TV + (2007/2010), apresentou o programa "Memória", em parceria com Marcelo Duarte, pela Rádio Emissora ABC e a Série de 150 programas de Memória de TV, gravados para a Prefeitura de Santo André.

            Ademir tem também vários livros publicados entre eles: São Bernardo, seus bairros, sua gente, A imigração japonesa em São Bernardo do Campo,           3. Palestra de São Bernardo, meio século: 1935-1985, Migração, Urbanismo e Cidadania, Migração e Urbanização, entre outros. Obteve, entre outros, o Prêmio Esso de Jornalismo, em parceria com o jornalista Édison Motta, em 1976, pela série "Grande ABC: a metamorfose da industrialização".

Para conhecer um pouco mais do trabalho de Ademir Medici, fiz uma entrevista sobre o seu processo de trabalho e os desafios de atuar como um jornalista memorialista na região. A íntegra dessa entrevista está registrada a seguir.


Quando começou a trabalhar como memorialista e jornalista especializado em memória?

Ademir Medici: Em 1968, quando editei um jornal chamado “O Tambor”. À época trabalhava no Departamento Pessoal de uma empresa química chamada Resana e que ficava em São Bernardo (hoje está em Mogi das Cruzes). O jornal divulgava as atividades do Esporte Clube Resana. Sem o saber, estava fazendo um jornal de integração dos funcionários. E desde o primeiro número sempre abri espaço à memória, entrevistando os colegas, indagando de onde vieram, etc – mais ou menos como estamos fazendo agora para Raízes. Lembro de um “O Tambor” que trazia na capa o mapa do Brasil dividido pelos Estados. Fizemos um levantamento das origens étnicas de cada funcionário, contabilizando quantos eram de cada Estado.

Por que resolveu entrar nessa área?

Ademir Medici: Acho que começou mesmo na Resana. Dava certo. As pessoas gostavam. Depois, já no Diário do Grande ABC, sempre encontrei espaço na Memória. Escrevia, editava, atuava nas várias editorias. E, sempre que possível, punha Memória nas matérias.

            Certa vez, numa reunião de pauta, surgiu a ideia de se contar como foi, historicamente, a formação de cada bairro do Grande ABC, para quebrar um pouco o usual de que tudo partia do quinhentismo e de João Ramalho. Fiquei de fazer a primeira reportagem; depois haveria um revezamento com outros repórteres. Na verdade, o revezamento não houve. Fiquei com a incumbência de fazer todas as matérias, que se aproximaram de 100, páginas inteiras, dominicais.

            Deu tão certo que pensamos – eu e o jornalista Edison Motta – em fazer uma série questionando os sempre cantados momentos importantes da industrialização. “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”, este foi o título. Mostramos que a forma em que a região foi industrializada foi sem qualquer planejamento urbanístico, daí porque enfrentávamos – em 1976, ano da reportagem – problemas graves como o da habitação, meio ambiente, ocupação das áreas ambientais, etc.
  
          A série ganhou o Prêmio Esso daquele ano, não sem criar uma série de problemas para a dupla de repórteres. Passamos de questionadores a questionados, de remar contra a maré, de ser contra o “progresso” regional. A série foi incluída no livro “A Arte da Reportagem”, de Igor Fuser (organizador), Scritta (Coleção Clássica), 1996. E muito do que falamos lá atrás passou a ser digerido e discutido, em congressos, seminários e, em especial, nos setores técnicos de planejamento das Prefeituras.

Inicialmente quais foram os desafios enfrentados?

Ademir Medici: Fazer Memória no jornalismo, da forma que buscamos fazer, significa mexer em feridas. A ideia é ouvir a população como um todo, sem ideologias preconcebidas. E isso incomoda. Não foram poucas as vezes que pediram nossas cabeças, por denunciar falcatruas, maus caminhos percorridos. Mas, prosseguimos.

Qual é a metodologia de trabalho que usa?

Ademir Medici: Jornalismo puro. Memória oral, sem desprezar as fontes primárias e secundárias. Pelo contrário, fazendo uma tabelinha entre as entrevistas e os registros disponíveis, em fontes oficiais, em publicações da grande mídia, na imprensa alternativa, etc. Paul Thompson é uma referência permanente, como o são autores como Eclea Bosi.

Conte um pouco de como é a sua rotina de trabalho?

Ademir Medici: No jornal, escrever uma coluna – agora página – por dia, todos os dias, sete dias por semana, com pausas apenas nas férias, requer disciplina e um bom arquivo. Tudo precisa ficar pronto no começo da tarde, porque no dia seguinte tem mais. Em paralelo, temos outros trabalhos, os livros que escrevemos. Daí a disciplina. Mas dá tempo de cuidar dos meus cachorros.

Quando criou a sua coluna e por que?

Ademir Medici: Então, tudo começou com a série “A História dos Bairros”, como já falamos. A cada reportagem, recebíamos mais informações sobre o bairro focalizado. Informações e fotos, documentos. Mas aquele bairro já estava coberto, agora o desafio era focalizar o bairro seguinte, de cada uma das sete cidades.

            Fomos guardando o material recebido. Até que, em 1985, o Diário do Grande ABC lançou o projeto “Domingos": Domingo em São Bernardo, Domingo em Mauá, Domingo em Ribeirão Pires. Eram suplementos dominicais, voltados para cada cidade. Lembramos do material recebido e inédito e criamos a coluna Memória.

            Deu tão certo que a coluna continuou nos "Domingos" e passou a ser publicada diariamente. Era setembro de 1987. O Museu de São Caetano guarda todas as colunas, em fundos específicos, por ordem de publicação. O Museu de Santo André arquiva as colunas por assunto. Os demais centros de memória também arquivam este material.

Explicar com detalhes esse início.

Ademir Medici: A coluna, no início, ocupava o rodapé de uma das páginas. Textos-legendas, sempre com uma foto e um texto explicativo. Uma preocupação sempre nos dominou: identificar o entrevistado, o autor da foto, quem a guardou, a qual acervo pertence. Mostrar que o brasileiro tem memória, basta ser estimulado. Sempre os chamei de parceiros. Com isso, ajudamos a valorizar muita gente, que passou a se dedicar à Memória. Cresceu a iconografia e bibliografia regionais. Novos moradores tornaram-se escritores. A Memória foi importante no estímulo à organização dos Congressos de História.

Por quais fases a sua coluna passou?

Ademir Medici: No começo, fazer a Memória diária era uma entre tantas tarefas. Editávamos o Caderno Local do Diário, chamado Editoria Geral, semente do Caderno Setecidades dos dias atuais. Entre a coordenação da editoria e a edição, abríamos a gaveta para escolher a foto histórica a ser publicada no dia seguinte. Em 1990 fui convidado pelo prefeito Celso Daniel para ser seu assessor de imprensa. Pedi demissão. O jornal me deu uma licença, com a condição de continuar a fazer a coluna Memória. Sentia aí, da importância do espaço. A cada ano, com a colaboração dos leitores, fomos ampliando o espaço, até chegar ao formato atual.

Descreva a sua coluna e como ela é feita?

Ademir Medici: A página tem a matéria principal, da abertura, e as várias seções – fatos principais do dia ao longo da História, Santos do Dia, cidades que aniversariam, etc – culminando com o obituário.
            Foram exigências do leitor.
            Pudemos criar um elenco tão grande de informações que é impossível publicar, diariamente, todos os fatos ocorridos naquela data. Tanto assim que privilegiamos os anos redondos – neste 2014, os fatos terminados em 4 e em 9. Hoje mantenho um contato diário e pessoal com os serviços funerários e cemitérios, registrando o nome da pessoa que falece, sua idade e origem, dentro do princípio de pensar a formação étnica desta região que já foi agrícola, industrial e hoje se transforma. De onde vieram os nossos moradores? Esta é uma pergunta diária que faço. A terra natal dos velhinhos que partiram. Penso que, mais cedo ou mais tarde, este conjunto de informações interessará aos novos pesquisadores.

Destaque o artigo mais marcante que você fez e por que?

Ademir Medici: Foi uma série sobre os acidentes do trabalho nas nossas indústrias, assunto tabu. Preparei-me. Participei de simpósios. Procurei entender a lógica dos dados oficiais da Previdência Social. E fui à luta. Dentro da série, tive acesso a um documento reservado e confidencial sobre os acidentes dentro das montadoras de automóveis. Virou manchete. Pela primeira vez um jornal – no caso o Correio Metropolitano, onde trabalhava – divulgou o número de acidentes, mortes, invalidez permanente ou não, dias perdidos, etc – numa Volkswagen, numa Ford, numa General Motors. As montadoras trocavam estatísticas entre si, e como repórter descobri a de um ano inteiro. Passei por cima dos setores internos de comunicação de cada multinacional e mostrei que o nosso trabalhador corria riscos claros de vida mesmo nas empresas com tecnologia de ponta.

            Tempos depois, numa nova matéria, mostrei a morte de um colega de bairro e ginásio, esmagado por uma prensa dentro de uma indústria automobilística considerada modelar.

Para quem deseja entrar nessa área quais conselhos daria?

Ademir Medici: Gostar de gente. Ter faro jornalístico. Não se incomodar com a carga de trabalho. Abrir espaço ao pequeno. Fazer jornalismo, enfim.
           
 Caso dos tuberculosos. Para trabalhar, era preciso apresentar uma abreugrafia, a chapa dos pulmões. Os doentes não eram admitidos. O que fazia o tuberculoso? Pedia a um colega de boas condições de saúde para que tirasse a chapa no seu nome. Pronto, estava admitido.
            Conheci um desses tuberculosos, que morreu logo depois, trabalhando.
            Para demonstrar o problema, tirei três abreugrafias, uma no nome do bispo Dom Cláudio Hummes, outra no nome do Prefeito Raimundo da Cunha Leite e uma terceira no nome do médico Caio Ramaciotti, Secretário Municipal de Saúde. Ninguém me pediu documentos. E por causa da matéria, precisei explicar-me na Associação Paulista de Medicina. Jornalisticamente, mostrávamos mais uma vez o lado triste do Grande ABC monumental.

Fale um pouco sobre os seus livros.

Ademir Medici: São todos sobre Memória, quase todos sobre o Grande ABC. Livros feitos com base na memória oral, mas checando com as informações oficiais que muitas vezes são desconhecidas pelas próprias fontes.
Busco sempre descobrir os arquivos ditos “mortos”, que são mais vivos que os arquivos correntes. Sempre há uma alma generosa que guarda documentos desprezados pelas próprias entidades que os produziram. Acho que consultei todas as plantas e processos que documentaram as origens dos nossos bairros. Está tudo lá. Basta pôr uma máscara e enfrentar os ácaros. Os livros de atas, livros de tombo, álbuns fotográficos, tudo é fonte para comprovar o que as pessoas narram. Claro, as narrativas são muito mais ricas.
            O livro “Semente do Grande ABC”, por exemplo, meu último publicado. A partir da Paróquia da Boa Viagem, percorri as 97 outras paróquias, das sete cidades, mostrando a formação da Igreja no Grande ABC. Quantas histórias ouvidas! Quantos documentos folheados!

Quais os títulos que já publicou?

Ademir Medici: Foram 34 livros fora outros trabalhos: contribuições em obras coletivas, CDs, etc. Está tudo no anexo.

Qual a diferença do trabalho de memória na coluna e nos livros?

Ademir Medici: Na página Memória, é a notícia instantânea, que pode ou não ganhar suítes. O livro é o desenvolvimento com maior fôlego do tema tratado.

Como um trabalho ajuda o outro?

Ademir Medici: Mostrando caminhos, lembrando fontes, assinalando possibilidades.

Quais foram os maiores desafios dos seus livros?

Ademir Medici: Contar uma história verdadeira, e oferecer material para que outras pessoas possam dar continuidade ao trabalho, aprofundando-o.

Como foi a metodologia?

Ademir Medici: Cada livro tem suas características. O de Mauá, por exemplo, foi idealizado com a ajuda direta de uma comissão de moradores. Nos reuníamos às sextas-feiras, à noite, no Museu Barão de Mauá. Eu era o editor, os velhinhos eram os repórteres. Discutíamos pautas. E durante a semana cada qual seguia o seu caminho para trazer o resultado das pesquisas/entrevistas na sexta seguinte.
           
O livro dos 70 anos do Sindicato dos Químicos do ABC: foi uma conjugação de esforços para descobrir informações de tempos difíceis para a vida sindical. De repente, um antigo dirigente guardou, em casa, o que não se podia manter no próprio sindicato. Típico trabalho de investigação.

            O livro dos bairros de São Caetano: foi um retorno a todos os bairros, estabelecendo-se um canal em cada região da cidade, geralmente nas casas das pessoas. Ali recebíamos os antigos para entrevistas.
            E assim por diante.


Suas considerações finais

Ademir Medici: É isso. O trabalho apenas começa. Cada um dos velhinhos que tem o seu nome, idade e cidade natal divulgados no obituário da página Memória do Diário do Grande ABC é uma fonte que partiu deixando – ou não – histórias da sua vida. Lamento sempre não tê-los conhecido. Não ter entrevistado todos eles. Não ter tomado café em suas casas.
            Geralmente, quando estou de frente com um entrevistado, um filho ou filha acompanha a entrevista. Ao final, o filho se surpreende com a carga de informações que o pai ou mãe passou àquele repórter abelhudo e desconhecido.

- Puxa, pai, por que o senhor não nos contou essas coisas?
- Vocês não perguntaram!

É isso, precisamos criar o hábito de perguntar. De gravar respostas. De manter as informações coletadas, para entender melhor como foi que tudo aconteceu, verdadeiramente, sem maquiagens.

(ESSE TEXTO NÃO PODE SER COPIADO SEM OS DEVIDOS CRÉDITOS DE AUTORIA, CONFORME A LEGISLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS LEI 9610, de 19 de fevereiro de 1998, "Dos Direitos Morais do Autor", Artigo 24, Inciso II. POR FAVOR, NÃO COPIEM, COMPARTILHEM O LINK. OBRIGADA)  



Fonte: O livro das curiosidades de São Caetano do Sul, Priscila Gorzoni


*É jornalista, pesquisadora, historiadora. Formada em jornalismo pela Universidade Metodista, com formação em ciências sociais pela USP e Direito pelo Mackenzie, tem especialização em Fundamentos e Artes pelo Instituto de Artes da UNESP de São Paulo e Mestre em história pela PUC de São Paulo. É autora do livro Abre as portas para os Santos Reis da Editora Fundação Pró-Memória, Animais nas Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que benzem com as mãos da editora UCG.



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