Quem se
interessa em conhecer mais sobre memória da cidade, curiosidades e fatos
históricos do ABCD, não perde um dia a leitura da coluna “Memória, do Diário do Grande ABC”, de Ademir Médici. Essa coluna é publicada
diariamente desde 2 de setembro de 1987 e focaliza a memória histórica e social
desta região, integrada por sete municípios.
Esse jornalista memorialista ganhou
notoriedade com seus variados trabalhos sobre a memória, as histórias e os
personagens destaca dos ou inusitados da região. De livros, artigos a programas
de televisão, Ademir tem feito a sua própria história dentro da memória da
região. Médici é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação Social
Cásper Líbero. Atua na Imprensa do Grande ABC desde 1968. Especializou-se na
área de resgate e construção da memória.
Além da Coluna
Memória, do Diário do Grande ABC, ele colabora com a revista História Viva,
da Ediouro Duetto Editorial, Co-produziu e apresentou o programa
"Memória na TV", pela TV Vivax, Canal 3 – edição 135, em junho de
2008. Manteve o quadro MEMÓRIA no
programa ABCD Maior em Revista, pela TV + (2007/2010), apresentou o programa
"Memória", em parceria com Marcelo Duarte, pela Rádio Emissora ABC e
a Série de 150 programas de Memória de TV, gravados para a Prefeitura de Santo
André.
Ademir tem também vários
livros publicados entre eles: São Bernardo, seus bairros, sua gente, A
imigração japonesa em São Bernardo do Campo, 3.
Palestra de São Bernardo, meio século: 1935-1985, Migração, Urbanismo e
Cidadania, Migração e Urbanização, entre outros. Obteve, entre outros, o Prêmio Esso de Jornalismo, em parceria com o
jornalista Édison Motta, em 1976, pela série "Grande ABC: a metamorfose da
industrialização".
Para conhecer um pouco mais do
trabalho de Ademir Medici, fiz uma entrevista sobre o seu processo de
trabalho e os desafios de atuar como um jornalista memorialista na região. A
íntegra dessa entrevista está registrada a seguir.
Quando começou a trabalhar
como memorialista e jornalista especializado em memória?
Ademir Medici: Em 1968, quando
editei um jornal chamado “O Tambor”. À época trabalhava no Departamento Pessoal
de uma empresa química chamada Resana e que ficava em São Bernardo (hoje está
em Mogi das Cruzes). O jornal divulgava as atividades do Esporte Clube Resana.
Sem o saber, estava fazendo um jornal de integração dos funcionários. E desde o
primeiro número sempre abri espaço à memória, entrevistando os colegas,
indagando de onde vieram, etc – mais ou menos como estamos fazendo agora para
Raízes. Lembro de um “O Tambor” que trazia na capa o mapa do Brasil dividido
pelos Estados. Fizemos um levantamento das origens étnicas de cada funcionário,
contabilizando quantos eram de cada Estado.
Por que resolveu entrar nessa
área?
Ademir Medici: Acho que começou
mesmo na Resana. Dava certo. As pessoas gostavam. Depois, já no Diário do
Grande ABC, sempre encontrei espaço na Memória. Escrevia, editava, atuava nas
várias editorias. E, sempre que possível, punha Memória nas matérias.
Certa vez, numa reunião de pauta, surgiu a ideia de se contar como foi,
historicamente, a formação de cada bairro do Grande ABC, para quebrar um pouco
o usual de que tudo partia do quinhentismo e de João Ramalho. Fiquei de fazer a
primeira reportagem; depois haveria um revezamento com outros repórteres. Na
verdade, o revezamento não houve. Fiquei com a incumbência de fazer todas as
matérias, que se aproximaram de 100, páginas inteiras, dominicais.
Deu tão certo que pensamos – eu e o jornalista Edison Motta – em fazer uma
série questionando os sempre cantados momentos importantes da industrialização.
“Grande ABC, a metamorfose da industrialização”, este foi o título. Mostramos
que a forma em que a região foi industrializada foi sem qualquer planejamento
urbanístico, daí porque enfrentávamos – em 1976, ano da reportagem – problemas
graves como o da habitação, meio ambiente, ocupação das áreas ambientais, etc.
A série ganhou o Prêmio Esso daquele ano, não sem criar uma série de problemas
para a dupla de repórteres. Passamos de questionadores a questionados, de remar
contra a maré, de ser contra o “progresso” regional. A série foi incluída no
livro “A Arte da Reportagem”, de Igor Fuser (organizador), Scritta (Coleção
Clássica), 1996. E muito do que falamos lá atrás passou a ser digerido e
discutido, em congressos, seminários e, em especial, nos setores técnicos de
planejamento das Prefeituras.
Inicialmente quais foram os
desafios enfrentados?
Ademir Medici: Fazer Memória no
jornalismo, da forma que buscamos fazer, significa mexer em feridas. A ideia é
ouvir a população como um todo, sem ideologias preconcebidas. E isso incomoda.
Não foram poucas as vezes que pediram nossas cabeças, por denunciar falcatruas,
maus caminhos percorridos. Mas, prosseguimos.
Qual é a metodologia de
trabalho que usa?
Ademir Medici: Jornalismo puro.
Memória oral, sem desprezar as fontes primárias e secundárias. Pelo contrário,
fazendo uma tabelinha entre as entrevistas e os registros disponíveis, em
fontes oficiais, em publicações da grande mídia, na imprensa alternativa, etc.
Paul Thompson é uma referência permanente, como o são autores como Eclea Bosi.
Conte um pouco de como é a sua
rotina de trabalho?
Ademir Medici: No jornal,
escrever uma coluna – agora página – por dia, todos os dias, sete dias por
semana, com pausas apenas nas férias, requer disciplina e um bom arquivo. Tudo
precisa ficar pronto no começo da tarde, porque no dia seguinte tem mais. Em
paralelo, temos outros trabalhos, os livros que escrevemos. Daí a disciplina.
Mas dá tempo de cuidar dos meus cachorros.
Quando criou a sua coluna e por
que?
Ademir Medici: Então, tudo
começou com a série “A História dos Bairros”, como já falamos. A cada
reportagem, recebíamos mais informações sobre o bairro focalizado. Informações
e fotos, documentos. Mas aquele bairro já estava coberto, agora o desafio era
focalizar o bairro seguinte, de cada uma das sete cidades.
Fomos guardando o material recebido. Até que, em 1985, o Diário do Grande ABC
lançou o projeto “Domingos": Domingo em São Bernardo, Domingo em Mauá,
Domingo em Ribeirão Pires. Eram suplementos dominicais, voltados para cada
cidade. Lembramos do material recebido e inédito e criamos a coluna Memória.
Deu tão certo que a coluna continuou nos "Domingos" e passou a ser
publicada diariamente. Era setembro de 1987. O Museu de São Caetano guarda
todas as colunas, em fundos específicos, por ordem de publicação. O Museu de
Santo André arquiva as colunas por assunto. Os demais centros de memória também
arquivam este material.
Explicar com detalhes esse início.
Ademir Medici: A coluna, no
início, ocupava o rodapé de uma das páginas. Textos-legendas, sempre com uma
foto e um texto explicativo. Uma preocupação sempre nos dominou: identificar o
entrevistado, o autor da foto, quem a guardou, a qual acervo pertence. Mostrar
que o brasileiro tem memória, basta ser estimulado. Sempre os chamei de parceiros.
Com isso, ajudamos a valorizar muita gente, que passou a se dedicar à Memória.
Cresceu a iconografia e bibliografia regionais. Novos moradores tornaram-se
escritores. A Memória foi importante no estímulo à organização dos Congressos
de História.
Por quais fases a sua coluna
passou?
Ademir Medici: No começo, fazer a
Memória diária era uma entre tantas tarefas. Editávamos o Caderno Local do
Diário, chamado Editoria Geral, semente do Caderno Setecidades dos dias atuais.
Entre a coordenação da editoria e a edição, abríamos a gaveta para escolher a
foto histórica a ser publicada no dia seguinte. Em 1990 fui convidado pelo
prefeito Celso Daniel para ser seu assessor de imprensa. Pedi demissão. O
jornal me deu uma licença, com a condição de continuar a fazer a coluna
Memória. Sentia aí, da importância do espaço. A cada ano, com a colaboração dos
leitores, fomos ampliando o espaço, até chegar ao formato atual.
Descreva a sua coluna e como
ela é feita?
Ademir Medici: A página tem a
matéria principal, da abertura, e as várias seções – fatos principais do dia ao
longo da História, Santos do Dia, cidades que aniversariam, etc – culminando
com o obituário.
Foram exigências do leitor.
Pudemos criar um elenco tão grande de informações que é impossível publicar,
diariamente, todos os fatos ocorridos naquela data. Tanto assim que
privilegiamos os anos redondos – neste 2014, os fatos terminados em 4 e em 9. Hoje
mantenho um contato diário e pessoal com os serviços funerários e cemitérios,
registrando o nome da pessoa que falece, sua idade e origem, dentro do
princípio de pensar a formação étnica desta região que já foi agrícola,
industrial e hoje se transforma. De onde vieram os nossos moradores? Esta é uma
pergunta diária que faço. A terra natal dos velhinhos que partiram. Penso que,
mais cedo ou mais tarde, este conjunto de informações interessará aos novos
pesquisadores.
Destaque o artigo mais
marcante que você fez e por que?
Ademir Medici: Foi uma série
sobre os acidentes do trabalho nas nossas indústrias, assunto tabu.
Preparei-me. Participei de simpósios. Procurei entender a lógica dos dados
oficiais da Previdência Social. E fui à luta. Dentro da série, tive acesso a um
documento reservado e confidencial sobre os acidentes dentro das montadoras de
automóveis. Virou manchete. Pela primeira vez um jornal – no caso o Correio
Metropolitano, onde trabalhava – divulgou o número de acidentes, mortes,
invalidez permanente ou não, dias perdidos, etc – numa Volkswagen, numa Ford,
numa General Motors. As montadoras trocavam estatísticas entre si, e como
repórter descobri a de um ano inteiro. Passei por cima dos setores internos de
comunicação de cada multinacional e mostrei que o nosso trabalhador corria
riscos claros de vida mesmo nas empresas com tecnologia de ponta.
Tempos depois, numa nova matéria, mostrei a morte de um colega de bairro e
ginásio, esmagado por uma prensa dentro de uma indústria automobilística
considerada modelar.
Para quem deseja entrar nessa
área quais conselhos daria?
Ademir Medici: Gostar de gente.
Ter faro jornalístico. Não se incomodar com a carga de trabalho. Abrir espaço
ao pequeno. Fazer jornalismo, enfim.
Caso dos tuberculosos. Para trabalhar, era
preciso apresentar uma abreugrafia, a chapa dos pulmões. Os doentes não eram
admitidos. O que fazia o tuberculoso? Pedia a um colega de boas condições de
saúde para que tirasse a chapa no seu nome. Pronto, estava admitido.
Conheci um desses tuberculosos, que morreu logo depois, trabalhando.
Para demonstrar o problema, tirei três abreugrafias, uma no nome do bispo Dom
Cláudio Hummes, outra no nome do Prefeito Raimundo da Cunha Leite e uma terceira
no nome do médico Caio Ramaciotti, Secretário Municipal de Saúde. Ninguém me
pediu documentos. E por causa da matéria, precisei explicar-me na Associação
Paulista de Medicina. Jornalisticamente, mostrávamos mais uma vez o lado triste
do Grande ABC monumental.
Fale um pouco sobre os seus
livros.
Ademir Medici: São todos sobre
Memória, quase todos sobre o Grande ABC. Livros feitos com base na memória
oral, mas checando com as informações oficiais que muitas vezes são
desconhecidas pelas próprias fontes.
Busco sempre
descobrir os arquivos ditos “mortos”, que são mais vivos que os arquivos
correntes. Sempre há uma alma generosa que guarda documentos desprezados pelas
próprias entidades que os produziram. Acho que consultei todas as plantas e
processos que documentaram as origens dos nossos bairros. Está tudo lá. Basta
pôr uma máscara e enfrentar os ácaros. Os livros de atas, livros de tombo,
álbuns fotográficos, tudo é fonte para comprovar o que as pessoas narram.
Claro, as narrativas são muito mais ricas.
O livro “Semente do Grande ABC”, por exemplo, meu último publicado. A partir da
Paróquia da Boa Viagem, percorri as 97 outras paróquias, das sete cidades,
mostrando a formação da Igreja no Grande ABC. Quantas histórias ouvidas!
Quantos documentos folheados!
Quais os títulos que já
publicou?
Ademir Medici: Foram 34 livros
fora outros trabalhos: contribuições em obras coletivas, CDs, etc. Está tudo no
anexo.
Qual a diferença do trabalho
de memória na coluna e nos livros?
Ademir Medici: Na página Memória,
é a notícia instantânea, que pode ou não ganhar suítes. O livro é o
desenvolvimento com maior fôlego do tema tratado.
Como um trabalho ajuda o
outro?
Ademir Medici: Mostrando
caminhos, lembrando fontes, assinalando possibilidades.
Quais foram os maiores
desafios dos seus livros?
Ademir Medici: Contar uma
história verdadeira, e oferecer material para que outras pessoas possam dar
continuidade ao trabalho, aprofundando-o.
Como foi a metodologia?
Ademir Medici: Cada livro tem
suas características. O de Mauá, por exemplo, foi idealizado com a ajuda direta
de uma comissão de moradores. Nos reuníamos às sextas-feiras, à noite, no Museu
Barão de Mauá. Eu era o editor, os velhinhos eram os repórteres. Discutíamos pautas.
E durante a semana cada qual seguia o seu caminho para trazer o resultado das
pesquisas/entrevistas na sexta seguinte.
O livro dos 70
anos do Sindicato dos Químicos do ABC: foi uma conjugação de esforços para
descobrir informações de tempos difíceis para a vida sindical. De repente, um
antigo dirigente guardou, em casa, o que não se podia manter no próprio
sindicato. Típico trabalho de investigação.
O livro dos bairros de São Caetano: foi um retorno a todos os bairros, estabelecendo-se
um canal em cada região da cidade, geralmente nas casas das pessoas. Ali
recebíamos os antigos para entrevistas.
E assim por diante.
Suas considerações finais
Ademir Medici: É isso. O trabalho
apenas começa. Cada um dos velhinhos que tem o seu nome, idade e cidade natal
divulgados no obituário da página Memória do Diário do Grande ABC é uma fonte
que partiu deixando – ou não – histórias da sua vida. Lamento sempre não tê-los
conhecido. Não ter entrevistado todos eles. Não ter tomado café em suas casas.
Geralmente, quando estou de frente com um entrevistado, um filho ou filha
acompanha a entrevista. Ao final, o filho se surpreende com a carga de
informações que o pai ou mãe passou àquele repórter abelhudo e desconhecido.
- Puxa, pai,
por que o senhor não nos contou essas coisas?
- Vocês não
perguntaram!
É isso,
precisamos criar o hábito de perguntar. De gravar respostas. De manter as
informações coletadas, para entender melhor como foi que tudo aconteceu,
verdadeiramente, sem maquiagens.
Fonte: O livro das curiosidades de São Caetano do Sul, Priscila Gorzoni
(ESSE TEXTO NÃO PODE SER COPIADO SEM OS DEVIDOS CRÉDITOS DE AUTORIA, CONFORME A LEGISLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS LEI 9610, de 19 de fevereiro de 1998, "Dos Direitos Morais do Autor", Artigo 24, Inciso II. POR FAVOR, NÃO COPIEM, COMPARTILHEM O LINK. OBRIGADA)
Fonte: O livro das curiosidades de São Caetano do Sul, Priscila Gorzoni
*É jornalista, pesquisadora, historiadora. Formada em jornalismo pela
Universidade Metodista, com formação em ciências sociais pela USP e Direito
pelo Mackenzie, tem especialização em Fundamentos e Artes pelo Instituto de
Artes da UNESP de São Paulo e Mestre em história pela PUC de São Paulo. É
autora do livro Abre as portas para os Santos Reis da Editora Fundação
Pró-Memória, Animais nas Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que
benzem com as mãos da editora UCG.
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