quarta-feira, 11 de maio de 2016

Série Entrevista com pesquisadores e autores do ABCD
 As histórias das catadoras de lixo do ABCD de José Amilton de Souza
Por: Priscila Gorzoni

Essa é a primeira entrevista de uma série que inauguro no meu blog. Na Série Entrevistas com pesquisadores e autores do ABCD postarei entrevistas com pesquisadores e autores de trabalhos sobre o ABCD. 
Nesse primeiro post eu conto: As histórias das catadoras de lixo do ABCD de José Amilton de Souza. Esse é um belo trabalho de Amilton, que vale a pena ser conhecido e divulgado. 





Nas grandes cidades, vários personagens com os quais cruzamos nas ruas diariamente, nos parecem invisíveis. Eles estão excluídos da história, são quase ´transparentes` e, muitas vezes, sentem o preconceito na pele.

Mas, a função deles, é fundamental e suas histórias, como as nossas, guardam muitas surpresas. Torná-los menos invisíveis não é  tarefa fácil, só um pesquisador com muita sensibilidade e coragem é capaz de fazê-lo. Compreendê-los é costurar a memória coletiva e individual de um grupo social.








Com um olhar humanizado, o Doutor em história social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, José Amilton de Souza foi a campo e mergulhou no universo de um desses grupos de excluídos: os catadores de lixo.

Amilton publicou, em 2011, o livro “Catadores de lixo, Narrativas de vida, políticas públicas e meio ambiente” no qual retrata histórias de vida, as relações de trabalho dos catadores de lixo da região do ABCD paulista. O autor realiza, em suas 284 páginas, um levantamento sério e profundo a respeito desses profissionais, abordando a vida cotidiana de alguns deles, seus problemas pessoais, o relacionamento pessoal deles, como se sentem, o que os encaminhou para essa atividade e outros assuntos como: migração, questões de saúde, políticas públicas e meio ambiente.

 José Amilton conhece a fundo o assunto, pois desenvolve, paralelamente, trabalhos de pesquisas e Assessorias nas áreas de História: Políticas Públicas, História e Memória Local/Regional e Patrimônio Histórico e Cultural. Atualmente, é professor e Vice-Diretor da Faculdade de História  da UNIFESSPA.

Para falar dessa pesquisa e obra, realizei uma entrevista para o meu blog com José Amilton de Souza

Quando iniciou a pesquisa sobre os catadores de lixo?
José Amilton de Souza: Em 1998. Ela fazia parte do tema de tese do meu doutorado, concluído em outubro de 2004. Durante esse período, aprimorei informações e construí a tese. 



Por que escolheu esse tema?
José Amilton de Souza: Tem a ver com a minha experiência profissional pessoal, fui gestor em planejamento urbano da Prefeitura de Santo André, por seis anos. Nesse tempo, em todas as discussões na esfera institucional, os catadores eram tratados como problemas, do trânsito, por exemplo, e não encarados como sujeitos de uma cidade da qual fazem parte, onde improvisam formas de viver. 

Como foram as pesquisas iniciais? As dificuldades e as descobertas.
José Amilton de Souza: Sobre as dificuldades de trabalhar um tema deste – absolutamente aconteceram, pelo fato de que são trabalhadores itinerantes da cidade. Não se tem espaço físico para encontrá-los. Esse processo de pesquisa e (de colher o) depoimento de catadores, foi a maior dificuldade, porque tinha que se trabalhar à noite, ou no meio-fio. Houve ocasião em que recebi ameaças de sucateiros. É muito diferente de fazer uma pesquisa em um arquivo ou em um ponto estabelecido, como uma casa. De certa forma, ‘atrapalhamos’ o cotidiano dos trabalhadores. Houve também o fato de marcar com o catador e não o encontrar depois, afinal, são assuntos delicados. A pesquisa acaba mexendo em feridas do passado, causa choro, outros se negam a falar.  Com alguns, da periferia, se manteve uma relação de maior confiança. Já os catadores do Centro perderam inclusive vínculos familiares. Tudo isso de certa forma foi mapeado em campo e resultou num grande aprendizado: à medida que os catadores foram fornecendo dados diferentes, adaptou-se o processo de pesquisa, bem diferente de um convencional, com documentos.  

Como fez a triagem dos entrevistados? O que levou em conta? Em que regiões decidiu fazer a pesquisa e por que escolheu essas localidades?
José Amilton de Souza: 60 entrevistas originaram o livro, apesar de nem todas terem entrado. Procurei selecionar por faixa etária, por homens e mulheres, e por regiões da cidade (Santo André) - periferia, centro, bairros, com base em depoimentos dos próprios catadores. Primeiramente a ideia era falar com catadores de uma forma geral. Daí fui percebendo que não conseguiria dar conta, devido à quantidade muito grande de catadores. Antes de Santo André, onde foquei a logística por conhecer melhor a realidade, andei por várias cidades do Brasil, visitei varias cooperativas, em Goiânia, no Sul, em Belém do Pará, para compreender em geral como funciona o sistema de trabalho dos catadores. 

Como fez a abordagem aos entrevistados e como foi isso?
José Amilton de Souza: Em um primeiro momento, a abordagem foi como pesquisador, com perguntas mais focadas, mas não funcionava. A realidade deles mostrou que não seria possível. Com perguntas fechadas e fixas, os catadores só respondiam sim ou não, o que não é interessante para a proposta da pesquisa. Mas, a partir da adoção de propor conversas temáticas, como “fale sobre sua infância; como era o trabalho no campo?”, surgiram grandes diálogos.

Conte alguma curiosidade que aconteceu durante a sua pesquisa de campo?
José Amilton de Souza: Foi o depoimento de catador, na escadaria da matriz de Santo André, a Igreja do Carmo, por volta das 22h. Ele me contou que era metalúrgico e havia sido demitido da Volkswagen. Naquela noite, ele estava com o macacão da empresa, e disse que todo dia fazia isso: vestia o uniforme antes de voltar para sua casa, na Zona Leste paulista, porque tinha medo que a família descobrisse sua nova condição, e não o aceitasse como catador. Em outro caso, um catador contou que veio do interior de Minas Gerais, e ao rememorar, começou a chorar. Trabalhar com depoimentos mexe muito com passado dos entrevistados, em feridas, o que traz uma situação bastante complicada.
Outra história, no Centro da cidade, ocorreu na principal rua de comércio, o calçadão. Lá - na época - havia um sucateiro que controlava o local. Ele era muito articulado com os comerciantes, mas não gostava de visitas.  Em uma noite – o local só permitia a coleta de material depois do fim do expediente comercial – dois garotões apareceram para mim mostrando armas sob as camisetas. 

Como foi a sua experiência de campo?
José Amilton de Souza: Um processo de grande aprendizado. Nele se percebe como a cidade não vê os catadores como sujeitos, embora eles façam tanto parte dela quanto qualquer outra pessoa. Hoje já é um pouco diferente, melhorou um pouco. A experiência de campo tem uma riqueza imensa, experiências com as histórias de vida, com emoção, valores e, ao mesmo tempo, reúne tensão e conflito. Parece que “a olho nu”, não conseguimos ver. É uma experiência que não se aprende em cursos. 

Conte um passo a passo da sua pesquisa.
José Amilton de Souza: Primeiro, em termos de pesquisa, veio a escolha do tema (que tem a ver com sua empatia). Como eu já trabalhava com isso, enquanto gestor de planejamento urbano,  era um tema recorrente para mim. Depois, veio o fazer um mapa geopolítico da cidade, para compreender onde estavam os sucateiros e catadores, e como todos se inter-relacionavam.  Em uma terceira etapa, veio a montagem do projeto de perguntas e depoimentos, por meio de questionários. Ao longo da experiência, refiz a estratégia (como já falado em outra resposta). Depois, veio a transcrição das falas, feita exatamente como foi falado, inclusive com os erros de português, respeitando com ética a história oral.  Com os depoimentos em mãos, mais fontes imagéticas e outras fontes impressas e documentos oficiais, criei a trama que deu origem ao livro.   

Qual era o objetivo de sua pesquisa?
José Amilton de Souza: Uma denúncia da situação desses homens, mulheres e jovens, que trabalham nesta condição no mundo contemporâneo, onde se tem tecnologias de ponta, com carros avançados, mas também existem seres humanos puxando carrinhos.  E ao mesmo tempo, perceber como essas pessoas têm seus conhecimentos, sua cultura, e como fazem parte dela, embora passem muitas vezes despercebidos. Eles são, a seu modo, sujeitos da cidade. 

Destaque uma ou duas histórias de vida que mais lhe chamaram a atenção durante  sua pesquisa?
José Amilton de Souza: Tem a de uma senhora, aposentada, que tinha uma habilidade: como ela já tinha bastante idade, se fosse concorrer com outros catadores em busca de material, não teria forças. Então ela trabalhava à noite, e sabia do horário de todos os dias da coleta oficial da Prefeitura. Dona Helena Leopoldina então se antecipava, ia aos pontos dessa coleta, recolhia antes da coleta oficial e conseguia seu material. Era uma senhora que conhecia as políticas públicas da cidade, e se utilisava disso. Ela tinha a contribuição de duas crianças, seus netos, um com 8 e outro com 10 ou 11 anos, que a ajudavam a empurrar o carrinho. Essa foi a forma dela conseguir manter a família. A única renda deles vinha da coleta. Nessa realidade, percebi o quanto as pessoas têm conhecimento para conduzir a vida. 

Quais foram as suas descobertas?
José Amilton de Souza: Primeiro, acho que esse aprendizado coloca em cheque nossa arrogância acadêmica. Não sabemos tudo sobre a realidade. É um choque. A segunda descoberta é uma evidência, perceber que todos temos conhecimento, mesmo os analfabetos, que têm sua cultura popular e de sobrevivência. Eles acabam improvisando e de maneira criativa. Despertam estratégias de: como ganhar a vida catando ‘lixo’, de forma itinerante. É uma lição de vida, profunda. 

O que mudou da sua visão anterior sobre os catadores?
José Amilton de Souza: Eu tinha uma visão apurada sobre eles. Sempre tive uma vida ligada à cultura popular. Não mudou minha visão, mas essa vivência ajudou a reorientar e aprofundar pontos de vista, a repensar e reavaliar, além do aprendizado que tive com os catadores.

Para quem deseja fazer pesquisas nessa área o que indicaria?
José Amilton de Souza: Uma profunda sensibilidade social, empatia com o outro. Sem isso, o processo de aproximação fica difícil. É um tipo de pesquisa que exige que haja despojamento. 

Quais fontes usou na pesquisa?
José Amilton de Souza: Fontes orais, imagéticas (de jornal local e próprias), reportagens de jornal e documentos oficias. Apesar de ter pouca coisa, porque catadores, em sua maioria, são analfabetos. Basicamente o que eles têm para se representar é a voz. 

Quais foram os seus referenciais bibliográficos?
José Amilton de Souza: Uma quantidade imensa, mas principalmente autores franceses, como Michel de Certeau, e seu livro “A invenção do cotidiano”. Outro autor é Edward Paul Thompson, que tem uma coletânea, com que trabalhei, e um autor italiano, Alessandro Portelli, que trata da história oral como gênero. Usei muito ainda a revista Projeto História, da PUC SP, principalmente os textos de história cultural, social e oral. 

Como a sua pesquisa pode mudar o cenário sociológico, antropológico e histórico da região?
José Amilton de Souza: Uma pesquisa, tese ou livro contribuem, mas não têm o poder da mudança. Quem tem o poder de alterar essa realidade são as políticas públicas. A pesquisa ajuda a focar a discussão acadêmica, a pautar as reflexões, desde o meio acadêmico até o político institucional. Meu livro é de um tema não recorrente na época da pesquisa. Deve ser uma das pioneiras teses sobre os catadores na área de História. Antes a temática sempre esteve ligada à Psicologia, Serviço Social ou estudo de cooperativas. 

Como foi a transformação da pesquisa em um livro?
José Amilton de Souza: Muito tranquila. Minha trama e escrita têm muito a ver com minha atuação, de cultura e meio popular. Tenho certa compreensão que a leva para vários públicos, tanto acadêmicos quanto a um leitor com outros níveis. Todos eles conseguem ler. Em termos de formatação, praticamente apenas pequenos ajustes. 

E quais são os seus projetos futuros e pesquisas. 
José Amilton de Souza: É o projeto de um trabalho parecido, porém com panfleteiros, um grupo que tem mais mulheres. Gostaria de fazer um trabalho com depoimentos orais, em São Paulo. Os panfleteiros são um pessoal que vende sonhos, no caso daqueles que trabalham para o mercado imobiliário, com seus lançamentos, mas que ao mesmo tempo está numa condição precária, tem remuneração baixa e trabalhando nos fins de semana. Mas, vou ter de adiar,  pois neste momento sou  professor da UNIFESSPA, e acabo de assumir a Vice-Diretoria da Faculdade de História  da UNIFESSPA. 



*É jornalista, pesquisadora, cientista social, historiadora. Formada em jornalismo pela Universidade Metodista, com formação em ciências sociais pela universidade de São Paulo USP e Direito pela Universidade Mackenzie, tem especialização em Fundamentos e Artes pelo Instituto de Artes da UNESP de São Paulo e Mestre em história pela Pontifica Universidade Católica de São Paulo PUC de São Paulo. É autora do livro Abre as portas para os Santos Reis da Editora Fundação Pró-Memória, Animais nas Batalhas pela editora Matrix e Os benzedores que benzem com as mãos da editora UCG.

(ESSE TEXTO NÃO PODE SER COPIADO SEM OS DEVIDOS CRÉDITOS DE AUTORIA, CONFORME A LEGISLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS LEI 9610, de 19 de fevereiro de 1998, "Dos Direitos Morais do Autor", Artigo 24, Inciso II. POR FAVOR, NÃO COPIEM, COMPARTILHEM O LINK. OBRIGADA)  


Fonte: O livro das curiosidades de São Caetano do Sul, Priscila Gorzoni




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